O Sistema Único de Saúde
A
década de 80 estava prestes a se encerrar, mas a agitação ainda se fazia
presente no panorama nacional; os brasileiros continuavam comemorando a nova
Constituição, mas ainda havia muito trabalho pela frente. Afinal de contas, o
Sistema Único de Saúde só existia, até então, no papel. Necessitava, pois, ser
regulamentado urgentemente para que a população pudesse, enfim, usufruir do
direito à saúde, conforme havia sido prescrito na Constituição.
À
primeira vista, essa regulamentação já não parecia ser tão simples, porque se
tratava de pôr em prática uma política de saúde tão inovadora quanto complexa,
como é o Sistema Único de Saúde. De fato, iríamos levar cerca de dois anos até
resolver grande parte das determinações constitucionais.
Uma
delas se referia à proposta de descentralização político-administrativa do SUS.
Na prática, ela ordenava aos órgãos federais, ou seja, o Ministério da Saúde e
o recém-extinto INAMPS, não só transferir poder como também oferecer condições
aos governos estaduais e municipais para que pudessem, então, assumir a
responsabilidade sobre todo o sistema de saúde nas respectivas áreas de
autoridade.
O
objetivo dessa proposta seria, na verdade, o de promover a estadualização ou a municipalização dos serviços de saúde. Tal medida certamente viria facilitar
tanto o controle social do sistema – a ser exercido também pelos próprios
usuários, através dos Conselhos de Saúde – quanto a tomada de decisões, que
aconteceria nos municípios e nos estados, e não mais no Ministério da Saúde, em Brasília.
Passados
quase dez anos desde a promulgação da Carta Magna, a estadualização ou a
municipalização dos serviços de saúde é algo que ainda não aconteceu em todos
os municípios do Brasil. Mas já ocorreu em muitos, principalmente nas capitais
dos estados.
Uma
outra determinação constitucional também complexa é a que diz que o SUS é
formado por um conjunto de unidades que prestam serviços de saúde, mantendo
ligação entre elas como se fosse uma rede. Essas unidades são subordinadas umas
às outras, isto é, têm uma hierarquia.
Vamos,
então, explicar um pouco melhor como deveria funcionar essa rede.
Quando
uma pessoa se sente ou deseja prevenir doenças ou, ainda, precisa de orientação
para uma vida mais saudável, deve procurar primeiramente a chamada unidade
básica do SUS, que pode ser o Posto ou o Centro de Saúde mais próximo de sua
moradia ou trabalho. Mas, se os profissionais da unidade básica diagnosticarem
que uma determinada doença tratável no Centro de Saúde, como a hipertensão
arterial, está se mostrando incontrolável e exige atendimento especializado por
um cardiologista, aquela pessoa imediatamente será encaminhada, pelo próprio
Posto ou Centro de Saúde, para outra unidade, que pode ser um ambulatório, um
Posto de Atendimento Médico – PAM – ou um hospital geral. Caso a pessoa venha,
ainda, a necessitar de uma internação, seu encaminhamento se dará, por fim, a
um hospital especializado, conforme a prescrição médica apresentada.
Assim,
podemos observar que a assistência a ser prestada às pessoas se fará não
somente através de uma rede de unidades de serviços, mas também de acordo com a
complexidade dos problemas diagnosticados, ou seja, do mais simples ao mais
grave.
Há,
ainda, uma previsão de que a organização das unidades de saúde em rede venha a
apresentar, também, variações em nível nacional, porque deve ser planejada de
forma a atender às características de cada região do Brasil. E como as
diferenças não são poucas, a tendência dessa rede é a de assumir certamente um aspecto
regionalizado, portanto bem mais adequado às necessidades dos clientes.
A essa
altura, implantar o SUS nos moldes previstos pela Constituição não era mesmo
tarefa das mais fáceis. Claramente, tratava-se de um grande desafio às
autoridades do País, sobretudo no que diz respeito a pôr em prática um
sem-número de outras atribuições, também conferidas ao Sistema Único de Saúde.
O
artigo 200 da Constituição, já mencionado no capítulo anterior, apresenta um
rol de atribuições para o SUS. São elas:
·
Controlar e fiscalizar serviços e produtos de
interesse para a saúde (também presente no Código do Consumidor) e participar
da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos (vacinas, soros),
derivados do sangue, etc.;
·
Executar as ações de vigilância sanitária,
epidemiológica e da saúde do trabalhador;
·
Ordenar a formação de recursos humanos na área
da saúde;
·
Definir e executar as ações de saneamento
básico;
·
Promover o desenvolvimento científico e
tecnológico;
·
Controlar a qualidade dos alimentos e das bebidas,
inclusive a água;
·
Controlar todas as etapas dos procedimentos que
envolvem as substâncias e produtos psicoativos (medicamentos que possuem a
capacidade de interferir no psiquismo, alterando o comportamento, a ansiedade,
a depressão ou a agitação), tóxicos (como venenos) e radioativos (por exemplo,
o césio, que provocou grave acidente em Goiânia);
·
Colaboras na proteção do meio ambiente e do
ambiente do trabalho.
Depois de inúmeras e longas reuniões
entre representantes do governo e dos diversos segmentos da sociedade,
especialmente da área de saúde, finalmente o SUS foi regulamentado através de
lei própria: a Lei Orgânica da Saúde – LOS, nº 8.080, de 19/09/1990.
Desde quando o SUS foi criado até
agora, toda e qualquer ação ou serviço de saúde a ser prestado às pessoas deve
seguir rigorosamente as regras determinadas pela LOS, que se aplicam não
somente às unidades públicas como também ás particulares, como hospitais,
clínicas, ambulatórios e profissionais liberais de variadas categorias –
médicos, enfermeiros, psicólogos, técnicos e auxiliares.
Como você vai fazer parte de uma
categoria profissional voltada para a saúde da população, vale a pena conhecer
a LOS, pois todo profissional de saúde – seja ele empregado de uma unidade
pública, de uma empresa particular, ou, ainda, trabalhador autônomo – tem a
obrigação de conhecer as regras que definem a saúde como um direito do ser
humano. Somente assim as ações e os serviços que promovem a saúde serão
prestados com responsabilidade, competência e dignidade.
Como já dissemos anteriormente,
os artigos iniciais da LOS têm a finalidade de reforçar as diretrizes
anteriormente definidas na Constituição Federal de 1988. Além disso, apresentam
ainda, com mais detalhes e maior precisão, o que foi definido no capítulo da Carta
Magna relativo à Saúde: as atribuições de cada nível do governo na organização
e no funcionamento do SUS, bem como os objetivos do próprio Sistema, voltados
ao atendimento integral das
necessidades de saúde das pessoas.
É interessante saber que em seu
Artigo 5º, a LOS detalha os objetivos do Sistema Único de Saúde, a seguir
relacionados:
·
Identificar e divulgar os fatores condicionantes
e determinantes da saúde;
·
Formular política de saúde destinada a promover,
nos campos econômicos e sociais, a redução dos riscos de doença e outros danos
ao bem-estar físico, mental e social do indivíduo e da coletividade;
·
Prestar assistência às pessoas por meio de ações
de promoção, proteção e recuperação da saúde, integrando as medidas
assistenciais com as preventivas.
Retomando nossa análise,
encontramos nos artigos da LOS muitos conceitos importantes, tanto para os
profissionais de saúde quanto para os usuários do SUS. A Vigilância Sanitária é um deles. E como você viu no capítulo que
trata da qualidade de vida, a vigilância à saúde é um compromisso de cidadania.
Por isso, temos não só o direito de conhecer as medidas de controle e
monitoramento dos serviços e produtos estabelecidas pelos órgãos competentes
como também o dever de zelar para que eles sejam, de fato, cumpridas ou
respeitadas, a fim de resguardar a saúde da comunidade.
A LOS conceitua a Vigilância
Sanitária como um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir
riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio
ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de
interesse da saúde. A partir da informação do conceito, foi possível não
somente delinear as áreas sobre as quais a Vigilância Sanitária deveria atuar
como também identificar uma série de fatores comprovadamente de risco, tanto
para a saúde individual quanto para a coletividade. Nesse sentido, não podemos
deixar de reconhecer que houve um avanço significativo na legislação da saúde,
ao indicar os rumos que devem ser seguidos pelas políticas e suas respectivas
ações de vigilância em nosso país.
Conheça algumas ações de
responsabilidade da Vigilância Sanitária no que se refere à proteção da saúde
dos indivíduos e da coletividade:
Promoção
de condições adequadas de moradia e local de trabalho, no que se refere a
fatores como temperatura, ruído, aeração, iluminação, etc. Um escritório com
iluminação inadequada pode vir, por exemplo, a prejudicar a visão das pessoas
que trabalham nesse ambiente;
Controle
dos produtos alimentícios, cosméticos, saneantes e agrotóxicos quanto às
condições de fabricação, embalagem, conservação, transporte, armazenagem,
comercialização, etc. Um alimento enlatado pode ter sido contaminado no
processo de fabricação e causar danos à saúde de quem o consumir;
Tratamento
e controle de elementos como: água, lixo, resíduos industriais, por exemplo, e
suas características físico-quimicas. Atenção! O lixo hospitalar deve ter
regras próprias de acondicionamento e destruição, pois contém produtos
perigosos à saúde;
Prestação
de serviços como: fiscalização dos bancos de sangue, serviços de hemoterapia e
hemodiálise, hospitais, consultórios, clínicas, serviços odontológicos,
creches, laboratórios óticos, de prótese, serviços de fisioterapia, de estética
e farmácias em relação aos procedimentos utilizados e às condições de prestação
dos serviços. A utilização de sangue contaminado causa até hoje doenças nas
pessoas que dele fazem uso, devido à não-realização de testes laboratoriais;
Fiscalização
do transporte de produtos perigosos: fiscalização das empresas transportadoras
quanto à observação das normas especiais de trânsito. Assim, muitos acidentes
com carga inflamável, causados por transporte inadequado, poderiam ser
evitados;
Fiscalização
da circulação de produtos, pessoas e alimentos entre países, visando ao
controle sanitário.
A
transmissão de doenças por um portador sadio ilustra muito bem a importância de
se combater os fatores de risco em suas origens, porque ele se mostra
aparentemente saudável, não apresentando sequer um único sinal da doença,
embora esteja contaminado por algum microrganismo patogênico. No entanto, o
portador sadio pode transferir às outras pessoas, acidentalmente, germes, vírus
e bactérias que, alojando-se em um organismo suscetível, terminam por provocar
doenças. A cozinheira de uma creche, por exemplo, pode portar o bacilo da
meningite e permanecer sem sintomas, mas pode contaminar as crianças.
Verificamos,
assim, que a Vigilância Sanitária está muito próxima de nossa vida, quer de
cidadão, quer de profissional da saúde.
Um
outro conceito igualmente importante, que se encontra na Lei Orgânica da Saúde, é o que diz respeito à Vigilância Epidemiológica, definida como
o conjunto de ações que proporcionam o conhecimento, a detecção e a prevenção
de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes de saúde
individual ou coletiva, com a finalidade de recomendar e adotar as medidas de
prevenção e controle das doenças.
Diante
desse conceito, não é difícil perceber, por exemplo, que a pesquisa de campo
constitui o carro-chefe da Vigilância Epidemiológica. Por essa razão, as
atividades a ela atribuídas se encontram diretamente voltadas para a coleta
minuciosa de dados sobre:
·
Causas das doenças, causas dos óbitos e
identificação dos grupos sociais mais atingidos;
·
Número de habitantes, inclusive por sexo e
idade, e percentuais de habitantes na zona urbana e na zona rural;
·
Diagnóstico e tratamento das doenças.
Além
disso, também compete à Vigilância Epidemiológica reunir e analisar os dados a
fim de estabelecer o perfil epidemiológico da população investigada. É
importante destacar, ainda que os estudos efetuados pela Vigilância
Epidemiológica fornecem dados relevantes a serem considerados na formulação das
políticas de saúde do País.
Outro
conceito apresentado na LOS refere-se à Saúde do Trabalhador, definida como o
conjunto de atividades que se destina, através das ações de vigilância
epidemiológica e sanitária, à promoção e à proteção da saúde dos trabalhadores,
assim como à recuperação e à reabilitação daqueles submetidos aos riscos e
danos advindos das condições do próprio ofício.
A
importância conferida à Saúde do Trabalhador estende às empresas o dever de
garantir aos empregados o direito à saúde. Além disso, podemos também concluir
que a LOS avança em direção ao reconhecimento de uma das antigas reivindicações
dos trabalhadores, no que se refere à melhoria das condições de trabalho,
sobretudo aquelas relacionadas à segurança. Nesse quesito, em especial, a LOS
recomenda medidas necessárias ao controle eficaz sobre os fatores determinantes
de saúde para reduzir não só o número de acidentes, mas também os riscos de
contrair doenças produzidas, desencadeadas ou relacionadas ao exercício
profissional, que se apresenta em níveis bastante significativos no Brasil até
hoje.
A
LOS trata ainda de muitas outras questões igualmente importantes. É ela que
norteia as políticas de formação e qualificação de recursos humanos para a área
de saúde – sobretudo daqueles destinados a atuar diretamente no Sistema.
Finalmente,
cabe registrar que a LOS inicial, ou seja, a de nº 8.080, de 19/09/1990,
terminou sofrendo vários vetos, que atingiram especialmente os artigos
relacionados à participação da comunidade no controle social do SUS, bem como
os relativos ao repasse direto dos recursos do governo Federal para os demais
níveis do Poder Executivo. Assim, foi editada uma outra Lei Orgânica da Saúde,
a de nº 8.142, de 28/12/1990. Portanto, o SUS é regulamentado por duas leis: a
de nº 8.080 e a de nº 8.142, ambas de 1990.
Apesar
dos vetos, a última forma da lei terminou garantindo a participação da
população nos Conselhos de Saúde estaduais e municipais, através de
representantes de associações, sindicatos, etc. Além disso, criou também as
Conferências Nacionais de Saúde.
Assim,
de acordo com os termos legais, os Conselhos de Saúde passam a ter um
funcionamento permanente, exercendo também o poder de decisão. Neles os
usuários participam em igualdade de condições com os demais segmentos que
compõem o Conselho, ou seja, os representantes do governo, dos prestadores de
serviços e dos profissionais da saúde. Enfim, pretende-se que a partir dessa
atuação conjunta venham a ser formuladas as estratégias de funcionamento e
controle da execução da política de saúde sob a responsabilidade do SUS, até
mesmo em seus aspectos econômicos e financeiros.
Já
a Conferência Nacional de Saúde, com realização prevista de quatro em quatro
anos, representa um evento de significativa importância, pois reúne os membros
dos Conselhos para promover uma avaliação global da situação de saúde e, ainda,
definir as diretrizes norteadoras das políticas a serem adotadas tanto em nível
federal quanto estadual ou municipal.
Em
linhas gerais, podemos concluir que a LOS apresenta uma visão ampla e bem
dimensionada acerca das ações prioritárias a serem realizadas pelo SUS para que
esta possa cumprir, enfim, seu papel de promover o atendimento integral à saúde
da população brasileira.
É
bom saber que existe, hoje, uma legislação que autoriza os brasileiros, em
geral, a exercer o controle sobre o SUS. No entanto, por si só ela não garante
ao cidadão o direito de participar dessa empreitada.
Um
primeiro passo a ser dado rumo à participação é o conhecimento das
determinações legais já existentes e que, por razões óbvias, dizem respeito à
nossa própria vida. Mas, daí para a frente, surge a consciência ou a vontade
política de querer ocupar, espontânea e persistentemente, o espaço
recém-conquistado. Trata-se, sim, de uma conquista, porque a sociedade,
especialmente na década de 80, se organizou para reivindicar e pôde, assim,
avançar um pouco mais em sua jornada histórica em busca de seus direitos.
Agora
é a nossa vez de dar continuidade a essa história, como cidadãos ou como
futuros profissionais da saúde, se desejarmos permanecer exercendo nosso direito
à saúde visando à qualidade de vida do povo brasileiro.
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